José Sarabruxo
- Associação das Letras

- há 4 horas
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É um escritor sem fama, sem Nobel, embora criativo. Expressivo na linguagem culta e dono de uma abstração invejável, é sempre enaltecido nas críticas e resenhas. Os comentários elogiosos sobre as reflexões transcendentais dos seus trabalhos o inspiraram a adotar o pseudônimo de Zé Bruxo.
Mesmo sem desfrutar da fama do Mago, José Sarabruxo coleciona um verdadeiro tesouro de textos, entre contos, crônicas, artigos e poesias, muitos já publicados e uma infinidade ainda inéditos.
Após proferir uma aula magna, a convite da universidade, uma professora de literatura, com aparência exuberante em um corpo avantajado, cabelos franjinha tingidos de vermelho mesclado de azul e trajando uma camiseta regata, cuja região das axilas exibia um abundoso chumaço cabeludo que dava vida à barba em uma tatuagem do Fidel, desafiou Zé Bruxo a escrever sobre mudanças comportamentais usando as bizarrices da tal linguagem neutra, que para ela era o grande fenômeno e principal ferramenta inclusiva.
Pego de surpresa, ele pensou e antes de aceitar, pediu para ela a indicação de um livro de gramática que trouxesse detalhes sobre as tais novas regras. Ela desconversou e em meio ao tumulto que os cercava, foi saindo furtivamente.
Mas, uma semente plantada em mente criativa, encontra solo fértil para germinar e Zé Bruxo ficou durante dias com o desafio martelando, sem esquecer da face redonda e olhos miúdos daquela mulher, com um grande piercing em formato de argola pendurado entre as narinas.
Começou a pesquisar para entender a lógica daquilo, chamado de linguagem neutra e depois de alguns dias estava com um grande arsenal de informações repletas de achismos ilógicos e carentes de fontes confiáveis, para começar a desafiadora tarefa.
O que lhe pareceu mais apropriado seria começar o exercício por algo conhecido, uma letra de música ou poesia. Pensou na Canção do Exílio de Gonçalves Dias, mas sentiu um certo desconforto ao tocar em algo tão sagrado da nossa literatura. Seria profano.
Foi para a letra do hino nacional, já que a nação é de todos, talvez um hino inclusivo, por si só, já elimine as diferenças sem a necessidade da “responsabilidade e honestidade” dos políticos.
“Ouviram do Ipiranga, as margens plácidas
de um povo heroico, o brado retumbante”
Já que ouviram, é a forma tanto masculina quanto feminina para a terceira pessoa do plural no verbo ouvir, não viu necessidade de mudança, então, prosseguiu: do Ipiranga, tem que ser de Ipirange - aqui cabe “U”, para não alterar a fonética, pois “GE” tem som de “J”, então: Ouviram de Ipirangue es margens plácides – até soou bem... de ume pove heroice - mais um problema fonético: ‘ice’ soa “C” e não o som de ‘Q’, também será preciso trocar o C por QU: De ume pove heroique e brade retumbante. Ao perceber o atoleiro em que estava entrando, Zé bruxo abandonou o hino e resolveu partir para algo mais simples, lúdico. Assim, pegou um velho poeminha tão conhecido das crianças (nada melhor do que começar a doutrinar os inocentes pequeninos) e tentou refazer a batatinha:
“Batatinha quando nasce, espalha ramas pelo chão. A menina quando dorme, põe a mão no coração”
E começou:
Batatinhe - o corretor alertou erro - quando nasce, espalhe – sim, embora espalha seja tempo verbal tanto masculino como feminino, não concorda com a próxima palavra neutralizada e não importa se o tempo verbal vai para o imperativo, rames - outra vez o alerta do corretor, pele - ficou bem confuso, afinal o que tem a ver a pele com ramas de batatinha? E foi em frente...
chãe - sim, tem que ser chãe, porque chão é “o chão”, masculino, machista. E menine - esta é cereja - quando dorme, põe e mãe - nada a ver com genitora, coisa de conservadores fascistas, pois mão embora terminando com “o”, mão é feminino, aliás, até o gênero ficou confuso, então tem que neutralizar para continuar inclusivo, ne coraçãe. - Pronto! encerrado.
“Batatinhe quando nasce, espalhe rames pele chãe. E menine quando dorme, põe e mãe ne coraçãe.”
Que maravilha este versinho! Agora está inclusivo e de forma abrangente. Talvez fonoaudiólogos venham a ser mais requisitados para ajudar os pequeninos e quem sabe alguns marmanjos, a pronunciar sons até então inexistentes em nosso idioma. Aliás, não seria: “fonoaudióloges”; “requisitades”; “pequenines” e “marmanjes”?
Ainda às voltas com as barbáries da linguagem neutra e suas implicações, Zé Bruxo leu a notícia sobre o ingresso de uma nova integrante em uma outrora respeitada academia, quando já sob o manto formal da imortalidade, falou no surgimento de nova língua, uma tal “pretuguês”.
Consta que, do sanatório para onde foi encaminhado, Zé Bruxo comunicou que parou de escrever e apenas conversará com os duendes do jardim.
Texto de: Romualdo Vicente de Ramos
Membro da Associação das Letras




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