Você me pergunta se algo desastroso pode acontecer neste país? O que posso dizer? Depois de correr os quatro cantos, deparei-me com tantas belezas e misérias, e por isso estou confuso. Sei, por experiências próprias que, quando as tensões sociais estão altas, não é preciso mais do que um acidente para causar um desastre. Mas, por aqui, as coisas não funcionam assim. A desigualdade não faz cócegas a ninguém. Uma boa parte acha bela e natural.
Fui convidado pelo prefeito de Quadrínculo a conhecer a realidade de sua população. Em seguida, ele pediu que o aconselhasse sobre como manter os meninos na escola. Havia, então, recebido oito ônibus para o transporte escolar e não os estava usando. Percorri o vasto território. Visitei algumas aldeias. O que eu vi? Nesta terra, cresce de tudo: bananas, cocos, maçãs, mandiocas, mangueiras. Essa gente tem porcos e galinhas e vacas nos cercados. Ninguém precisa erguer um dedo para comer. Se consegue ganhar dinheiro para um televisor e uma bicicleta motorizada trabalhando algumas horas por ano, o que mais pode querer? Filhos na escola? Essa meninada gosta demais de brincar...
— Por que os meninos não frequentam a escola por muito tempo? –perguntei a um pai.
Depois de pensar por longos minutos, enquanto cavoucava o chão vermelho com um galho seco, respondeu-me convicto:
— Sabe, moço, ambição não é coisa boa...
— Ambição?!
Pacientemente, voltou a cavoucar o chão com o galho seco, enquanto aguardava ansioso.
— A gente tem de tudo. Rocinha de milho, bananeiras, porcos, galinhas, aquelas duas vaquinhas... A vida é boa por aqui, seu moço, e ambição mata. Ninguém quer os filhos se perdendo por aí... Muito estudo, seu moço, prejudica, envereda por maus caminhos...
Casas em ruínas, currais apodrecidos, ervas daninhas invadindo plantações, caminhos esburacados. Ninguém percebia a miséria ao redor. Aquela gente não queria um futuro brilhante.
— Há outro jeito de viver muito mais fácil – comecei a dizer, curioso. – O progresso anda solto. Daqui para diante, os homens de conhecimento serão os ricos. Há uma nova sociedade acontecendo...
— Sei lá, seu moço, a gente vive feliz. Esse progresso não pode ser coisa boa. Com esse novo Governo...
— ?...
— Muito bondoso, é o pai dos pobres. Todo mundo está recebendo dinheiro dele, sem trabalhar. Nunca teve um Governo assim, que olhasse pra gente, e desse um pouco de valor.
Que Deus o abençoe! – e tirou o chapéu, mirando o céu. — Hoje, nadamos na fartura. Até parece o paraíso!
Por onde andei, ouvi respostas semelhantes. Em todas as casas, nos fundos, moitas de bananeiras.
— Quando a fome aperta, o que fazem? – indaguei.
— A gente come bananas. Com um cacho de bananas ninguém passa fome.
De volta ao prefeito, depois de dois meses remexendo esses fundões, comentei:
— O peixe começa a apodrecer pela cabeça.
— O que diz? – pulou assustado.
— Não há nada a fazer quando alguém se sente feliz, mesmo que, no futuro, esteja soterrado. Acredite: o homem só progride num ambiente hostil. Essa gente não precisa de mais nada.
— Mas o que farei com os oito novos ônibus?!
— Bem, não sei como possa utilizá-los. Quem sabe, levar os idosos a fazer alguns passeios aventurescos...
Agora, você me pergunta se algo desastroso pode acontecer neste país. Sinceramente, acho que não. Por aqui, a miséria é bela e natural, e a desigualdade é parte da paisagem.
Texto do Associado: David Gonçalves
Conto publicado na Miniantologia Letras Associadas 4 – em agosto/2016
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